Prima por uma análise mais profunda acerca do debate jurídico, e do papel dos juízes e da legislação na execução do justo e da equidade
Como se lê em sua introdução “nenhuma disciplina jurídica é tão problemática, tão suscetível de abordagens diversas – o que, aliás, a própria discussão que até hoje persiste quanto a seu objeto testemunha – do que a Introdução à Ciência do Direito, e, no entanto, nenhum ensino é tão fecundo e eventualmente tão fecundante quanto aquele que se ministra aos que se iniciam no estudo do direito”.
O direito, em seu desenvolver histórico, como nos diz Fernando Aguillar, sempre esteve marcado por controvérsias e dissidências interpretativas, o que fez, inclusive, que estudiosos como Karl Popper quisessem negar um seu caráter científico, em não se adotando o método aplicável às ciências naturais.
Superada essa espécie de crítica, temos, hodiernamente, o entendimento de que convivemos com uma ciência da argumentação, que propicia uma certa gama de entendimentos contrários sobre pontos específicos, excludentes entre si, mas plausíveis, por vinculados a um substrato de idéias. È assim que, sem adentrarmos no campo da antijuridicidade, podemos perceber situações postas ao judiciário que, envolvendo pretensões objetivamente idênticas (mas subjetivamente diversas), geram soluções antagônicas.
A obra que intendemos ora analisar trata, de um modo geral, dessa problemática, abordando uma das maiores dissensões estudadas pela disciplina da Introdução ao Estudo do Direito, que é o embate entre o direito natural e o positivismo jurídico. Como houvéramos dito em nossas primeiras palavras, é um sério problema de hermenêutica, de interpretação do direito, que se põe aos aplicadores do direito com maior freqüência do que imaginamos. Ser estrito ao que dispõe a letra da lei ou tentar interpretá-la de forma mais consentânea com a realidade social e fática que se nos apresenta, procurando fazer do direito um instrumento da justiça e não, por vezes, um impedimento a ela. E por outro lado, afastar-se da lei e abrir caminhos para arbítrios infundados ou seguir à risca a mens legislatoris?
Todas essas questões são abordadas com maestria no texto do professor de Harvard Lon L. Fuller, que tem por pano de fundo o julgamento de quatro aventureiros sobreviventes de um acidente que os reteve durante quase quarenta dias em uma caverna e que os obrigou a matar um terceiro companheiro que com eles se encontrava, no 33º dia de aprisionamento, o que fez com que não padecessem de inanição e pudessem escapar vivos desse horrível incidente.
Desse homicídio, que foi gerado por uma situação extremamente agônica surge toda a problemática hermenêutica que é o tema central do arrazoado. Após terem sido condenados à forca em primeira instância, os quatro acusados recorrem dessa decisão, à Suprema Corte de Newgarth, que terá, de forma final, o destino dos quatro desalentados em suas mãos.
Nesse pano de fundo surgem todas as controvérsias e dúvidas hermenêuticas e de consciência dos julgadores, representadas para o leitor por meio do voto de 4 dos membros da Corte do presidente Truepenny, quais sejam os juízes Foster, Tatting, Keen e Handy.
Interessante é notar que os nomes dos juízes não foram escolhidos em vão. Indicam, podemos assim dizer, sua posição em relação ao caso concreto a eles posto, como também sua própria visão sobre o direito.
Nesse sentido, o termo inglês foster - que é designado como sobrenome do primeiro dos julgadores, que possui uma visão mais elástica do que seja o direito, defendendo inclusive a existência de hipóteses de sobrevivência de “estados de natureza” em nossa atual sociedade – significa criatividade, fomento.
Keen, que é o sobrenome do juiz mais apegado ao legalismo estrito, significa pujança, firmeza. Handy, por seu lado, tem o sentido de alcunhar de habilidoso aquele que assim seja designado, caracterização essa que corresponde às feições do último dos julgadores.
Os magistrados supra citados devem exercer cognição sobre os fatos resumidamente citados e aplicá-los à regra jurídica denominada N.C.S.A. §12 – A, que em seu texto prega: “quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a morte”.
Embora se saiba que realmente os quatro homens foram os responsável diretos pela morte do quinto, denominado Roger Whetmore – que foi quem teve a idéia do assassinato de um deles, por sorteio, para a manutenção dos restantes – seria justo condená-los sabendo-se do horror por que passaram e da situação extremamente limítrofe que os levou a liquidar um semelhante para não serem também tragados pela fome?
Tem-se, então, o embate entre os diferentes pontos de vista, já citados, dos quatro juízes representantes das diversas correntes jurídicas, o que é um interessante exercício de argumentação calcado na defesa do que poderíamos dizer ser o direito natural, principalmente por parte do juiz Foster, do positivismo estrito, kelseniano, do juiz Keen, e de uma visão moderada do magistrado Handy, além do non liquet representado pelo segundo a se pronunciar, o juiz Tatting.
Interessante nesse embate é notar como os radicalismos podem coexistir no direito e até saírem vitoriosos, o que são os casos dos magistrados Foster e Keen, o primeiro essencialmente jusnaturalista e o segundo ferrenhamente positivista.
Enquanto Foster prega que teria havido verdadeiro estado de natureza, a denominada luta de todos contra todos, de Hobbes, o que tornaria inválida a aplicação de determinada lei geminada em um meio social, o magistrado Keen simplesmente se atém aos termos da norma, dizendo que se é escrito que quem matou intencionalmente deve ser condenado, não importam as condições em que se deu tal ato, mesmo sendo, como no caso, a morte de um a necessária continuação da vida de quatro. Não importando que, se hipoteticamente considerássemos os três sujeitos como o representante de toda a humanidade, toda a humanidade seria extinta, ao revés de só uma parte dele dever se dar ao sacrifício.
Superlativizar as ocorrências é, por vezes, uma interessante forma de enxergar a realidade e suas graves consequências.
Ao analisar toda a situação posta, não posso concordar nem com a primeira opção, que tornaria deveras ampla a seara da inaplicabilidade do direito, com reflexos negativos para a sociedade, que toda vez que se visse em situações agônicas, como se deu semana passada nos EUA, v.g., se encontraria em verdadeiro estado de natureza, nem com a visão legalista, positivista, que transforma o direito em letra fria.
O positivismo, como corrente jusfilosófica, encontra prementes qualidades e vícios imperdoáveis. Foi, certamente, um dos maiores artífices da cientifização de nossa ciência, a partir de sua metodização e busca por um objeto. Foi, no entanto, uma faca de dois gumes, que gerou um fenômeno de hermetismo tal que confinou o direito, antes meio de resolução de conflitos sociais, instrumento da civilidade, em fim em si mesmo. Por isso, no Brasil, é visto até como ranço o termo positivismo, abstraindo-se do signo muitos de seus mais frutíferos significados, resignando-se o termo ao pejorativo.
Por todo o exposto, entendemos ser mais consentânea com o caso a solução do magistrado Handy, o habilidoso, que sem se ater a extremismos, concilia os dois posicionamentos antagônicos e, sem destruir ou afastar a existência de um estado de direito e também ser fazer do direito um instrumento indiferente à realidade social, consegue fornecer aos jurisdicionados a aplicação da justiça ao caso concreto.
Entre o misoneísmo e o filoneísmo, entendidos no texto de forma radical, fica-se com o bom senso da atitude mediana, que sopesa fatores como consequências imediatas e mediatas da decisão: não se cria uma abertura que poderia gerar o entendimento afastador do direito, efeito mediato da vitória de um aresto nos termos daquele da lavra do magistrado Foster, nem se deixa de considerar a angústia e o indescritível sofrimento por que passaram os homens que tiveram que se servir de um semelhante para não morrerem. Nos termos exatos do juiz Handy: “o mundo não parece mudar muito, mas desta vez não se trata de um julgamento por quinhentos ou seiscentos frelares e sim da vida ou morte de quatro homens que já sofreram mais tormento e humilhação do que a maioria de nós suportaria em mil anos”.
Entre o direito natural e o positivismo, fico com a realização da justiça, embasada não nesta ou naquela teoria, mas no bom senso e na lei, não somente em uma ou em outra. Uma solução que não prevaleceu na obra analisada.
Devido a Truepenny e Keen terem votado pela confirmação da sentença, e a Tattling ter se abstido de votar, empatando a votação
Por Silmara Aguiar MendezFonte: www.monografias.brasilescola.com www.nacaojuridica.com.br
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