segunda-feira, 4 de maio de 2015

É possível falar em direitos dos animais? (parte 1)

O tema do direito dos animais é cercado de preconceitos e exageros e, por isso, é comumente visto como pitoresco, sem a seriedade que merece. Entretanto, a relação dos homens com os animais está, mais do que nunca, no centro de diversas controvérsias.
Sem a pretensão de esgotar o tema, que revela inúmeras nuances, dedicarei o espaço de duas colunas a essa investigação. Não desejo apresentar respostas, mas indicar os caminhos possíveis e os desafios existentes.
Embora tradicionalmente os animais sejam tratados como instrumentos ao dispor do homem, deve-se reconhecer que nos últimos 30 anos essa perspectiva vem sendo questionada. Isso talvez se explique pelo crescente número de famílias que contam com um animal de estimação. Levantamentos apontam que há mais de 100 milhões de animais domésticos em nosso país. Talvez seja o vegetarianismo em ascensão que ampare o fenômeno. Em pesquisa realizada no ano de 2012, o Ibope indicou que 8% da população das principais capitais e regiões metropolitanas se declara vegetariana. Independentemente dos motivos que levam a sociedade à mudança de perspectiva, é certo que cada vez mais se fala em direitos dos animais como forma de indicar que esses seres devem ser respeitados, não estando ao nosso inteiro dispor.
Não é de hoje que os maus-tratos a animais causam comoção entre nós. Na segunda metade da década de noventa, houve clamor popular contra a festividade denominada Farra do Boi, comum na região sul, em que o referido animal era perseguido e caçado. Algumas associações se reuniram no pólo ativo de ação civil pública, requerendo que o Estado de Santa Catarina fosse condenado a proibir a prática. Argumentou-se que os animais eram submetidos a crueldade. Em defesa, foi indicado que a festividade tinha significado cultural para parcela significativa da população e que o Estado coibia abusos. O TJSC julgou improcedente o pedido, acolhendo os argumentos da defesa.
O litígio chegou ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal que, por maioria de votos, proibiu o evento. O STF, naquela oportunidade, indicou que a crueldade não era eventual, mas congênita à prática, que, por isso, não poderia ser considerada cultural. Na oportunidade, foi dado destaque ao art. 225 da Constituição Federal, segundo o qual, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações”, incumbindo ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade” (parágrafo 1o, inciso VII).
Posteriormente, o STF deparou-se com situação semelhante, mas relativa à rinha de galos. Certas comunidades treinavam esses animais para batalhar entre si, muitas vezes até a morte, num jogo de apostas. A prática, também conhecida como galismo, passou a ser regulamentada pela Lei do Estado do Rio de Janeiro n. 2.895/98. Em verdade, a norma regulava a prática de exposição e competição entre aves de raça. Impunha-se, por exemplo, a vistoria dos locais da prática e ainda era determinado que, antes das competições, um médico veterinário capacitado atestasse o estado de saúde das aves.
Esse ato normativo foi considerado inconstitucional por violar o mesmo artigo 225, parágrafo 1o, inciso VII, da Constituição Federal. Naquela ocasião, foi destacado que a “proteção jurídico-constitucional dispensada à fauna abrange tanto os animais silvestres quanto os domésticos ou domesticados, nesta classe incluídos os galos utilizados em rinhas, pois o texto da Lei Fundamental vedou, em cláusula genérica, qualquer forma de submissão de animais a atos de crueldade”, pois “essa especial tutela, que tem por fundamento legitimador a autoridade da Constituição da República, é motivada pela necessidade de impedir a ocorrência de situações de risco que ameacem ou que façam periclitar todas as formas de vida, não só a do gênero humano, mas, também, a própria vida animal, cuja integridade restaria comprometida, não fora a vedação constitucional, por práticas aviltantes, perversas e violentas contra os seres irracionais, como os galos de briga”.
Esses precedentes permitem visualizar, com clareza, que a proteção legal aos animais não se circunscreve à condição de elementos do meio ambiente (Lei 9.605/98). A tutela não é uma função do meio ambiente, pois, se assim fosse, não haveria sentido em se vetar práticas cruéis contra animais domesticados.
Os problemas que surgem da exegese da regra constitucional que veda a crueldade contra animais estão mais adstritos ao conceito de “crueldade” e à própria definição de “animais”.
É cabível perguntar se a vedação contra crueldade abrange tanto mamíferos quanto insetos. O mundo da zoologia é divido entre vertebrados e invertebrados. Entre estes encontram-se insetos, moluscos, corais, águas vivas, vermes, entre outros. Na classe dos vertebrados, destacam-se os mamíferos, repteis, peixes, aves e anfíbios.
Uma resposta possível para essa questão reside no conceito de senciência, ou seja, a capacidade de sentir. A bem da verdade, a teoria da senciência é extrajurídica e procura explicar, do ponto de vista filosófico, quem deve estar na condição de sujeito. Para bem compreender essa questão é importante lembrar que na tradição cartesiana-kantiana, é a capacidade de raciocínio, ou razão, que nos caracteriza e distingue dos demais seres. É a razão que nos dá autonomia moral e que, portanto, livra-nos dos desígnios da natureza. A razão nos torna atores, e não meros objetos das múltiplas relações causais possíveis na natureza. O humano torna-se senhor da natureza e dos objetos que o circundam, podendo deles se utilizar.
Jeremy Bentham opõe-se a essa vertente filosófica. Seu pensamento moral caracteriza-se profundamente pela maximização do bem estar e felicidade. Uma ação é correta quando beneficia a maioria. Assim, o que importa não é a capacidade de raciocinar, mas a de sentir prazer, felicidade ou dor. Em outras palavras, a capacidade de felicidade e de sofrimento é a característica vital que assegura aos seres o direito a igual consideração. Bentham aduz que “se os filósofos não fizerem a inclusão de todos os seres sencientes no âmbito da comunidade moral, jamais conseguirão refinar-se moralmente, pois, embora os princípios da igualdade, da liberdade e da fraternidade só possam ser concebidos e seguidos por quem é capaz de fazer um raciocínio abstrato, a moralidade que fundamentam não visa atender apenas aos interesses egoístas de sujeitos racionais”.
Embora não seja a única significação possível, é minimamente razoável tomar a expressão “animais” como indicativa de “seres capazes de sentimento”. A norma que veda tratamento cruel a animais deve, ao menos, referir-se àqueles que efetivamente têm a capacidade de sentir. A ideia de crueldade está intrinsecamente ligada à imposição desnecessária de dor.
Assim, a vedação de maus tratos a galos e bois, tal como expresso pelo STF nos precedentes em destaque, explica-se, parcialmente, pelo conceito de que esses animais são seres passíveis de sentimento. Contudo, como procurarei demonstrar na próxima coluna, a idéia de “senciência” não esgota o problema do tratamento jurídico dispensado aos animais.
Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).
Publicado por Atalá Correia, juiz do Distrito Federal.
Fonte: ConJur

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